A intimidade entre o carnaval e o Rio de Janeiro é conhecida mundialmente. Um dos mais importantes eventos da cidade se apresenta como um retrato fiel do processo de construção da miscigenada cultura brasileira. Os bailes dos salões burgueses se misturaram com elementos africanos e, passando por tantas influências, ganharam as ruas. Na Europa, foi considerada uma festa profana na ascensão da Era Cristã, com a penitência na Quarta-feira de Cinzas. No Brasil, os Cordões e os Ranchos mostraram como era possível que o folclore africano coexistisse com o católico no mesmo espaço cultural.
Desde o século XIX, o carnaval serve como um importante instrumento de contestação política e, através das sátiras musicais, os governos são escarniados. Nos dias atuais, o engajamento político é pauta em desfiles como os do “Bloco do Nada”, “Mulheres Rodadas”, “Ocupa Carnaval” e tantos outros. Contudo, isso nunca afastou os políticos da festa. Ao contrário, o carnaval foi utilizado como instrumento eleitoral por muitos deles.
Há 33 anos, desde a inauguração do Sambódromo, os prefeitos do Rio fazem questão de entregar a chave para o Rei Momo e mostrar como estão comprometidos com a maior festa popular da cidade. O último ainda foi mais longe e arrumou um chapéu com as cores de cada escola de samba, para aparecer no meio da bateria de todos os desfiles. Nas terras cariocas, política e carnaval são indissociáveis.
O simbólico que compõe o carnaval é parte constituinte da formação cultural da cidade. Trata-se de um claro espaço de batalha entre a cultura dominante e a contra hegemônica, na qual estão inseridos tanto elementos cotidianos, quanto transgressores, manifestados através da folia. É também um lugar aonde os grupos marginalizados ganham voz, expondo as contradições sociais e os limites da atuação institucional. Com toda essa complexidade de ideias, práticas e símbolos, o carnaval tem um protagonismo central na trama social.
Mas, ainda assim, o atual prefeito, Marcelo Crivella (PRB), resolveu arrumar as malas e dar as costas para o Momo. Pela primeira vez, desde 1984, um governante não participa da abertura do carnaval em seu primeiro ano de mandato. E atentem: isso também é político. E isso é uma grave sinalização.
Crivella foi muito criticado, na campanha eleitoral, por ser um representante fiel da Igreja Universal, e muito se discutiu sobre os perigos de misturar fundamentalismo religioso com política. Ele negou que isso influenciaria. Ganhou as eleições. E, agora, dá claros sinais de que não haverá pudor em implementar o projeto de poder que o ampara. As nomeações de vários bispos para cargos de confiança da prefeitura, apesar de denunciadas, foram pouco alarmadas. Mas logo o carnaval?
O temor de que ele cessaria o financiamento da folia era injustificável, tendo em vista a bilionária movimentação financeira que a cadeia produtiva do carnaval gera para a prefeitura. O que está em cheque é a disputa pela hegemonia cultural. Crivella, como indivíduo – assim como tantos outros -, tem o direito de não gostar do samba, das marchinhas e dos excessos permitidos pela festa carnavalesca. Contudo, trata-se de uma figura pública central na condução da instituição municipal, logo, o maior representante do projeto político-cultural a ser trabalhado na cidade, no mínimo, pelos próximos 4 anos. E sabemos que a doutrina propagada pela sua Igreja é categórica ao proibir que seus adeptos se aventurem nas rotas profanas do carnaval.
Estamos diante de uma sinalização que precisa ser vista com muito cuidado. Não há movimento impensado na política. Há sempre uma mensagem. Uma guerra silenciosa contra as práticas que ele julga não ser “de bem” pode representar uma repressão velada a tantos e importantes movimentos artísticos da cidade. O carnaval de rua é uma resistência fundamental na disputa por uma cidade mais justa e acessível e o seu enfraquecimento representaria um grande golpe nas forças progressistas. Diante de um avanço significativo do conservadorismo, nenhuma atitude que despreze movimentos importantes para a cultura livre pode passar despercebida.
Bom carnaval, Crivella.
Por Juan Leal, produtor cultural e membro do Setorial de Cultura do PSOL Carioca.