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Por Joana Santos*

A construção social histórica do Brasil foi engendrada de tal forma que aprisiona mulheres, negros, indígenas, lgbts e não brancos a uma estrutura social claramente engessada, com raras oportunidades reais de mobilidade social. Esse engessamento, que é gerado e mantido pela classe burguesa, política, econômica e ideologicamente, intensifica ainda mais o conflito de classes, acentuando ainda mais a violência exercida pelo capital nestes grupos sociais. Também é importante lembrar que para Engels, o conflito de classes original é a do homem sobre a mulher, originando o machismo e o controle dos corpos pela sociedade de homens brancos cis heteronormativos.

A esta sociedade dominante é assegurado não só os locais de controle e poder, mas também permite que esta seja a única a desfrutar dos conceitos plenos de liberdade e democracia. Assim, dentro desse modelo escravagista, perpetuado ao longo de séculos, das mais diferentes maneiras, os corpos que fogem desse padrão possuem locais e funções bem definidas a serem exercidas na sociedade. Onde nem mesmo a ascensão social garante a total isenção das violências que são infligidas a estes corpos.

Dentre todos os corpos que desafiam esse modelo de sociedade machista branco cis heteronormativo, imposto e aceito, sem questionamento, como o único possível, os corpos das pessoas transgêneras são os mais desafiadores, e consequentemente, os mais excluidos das organizações sociais, sejam elas quais forem. Assim, o único espaço que lhes é reservado para que a sua sobrevivência seja assegurada, é o da marginalização social. Este espaço é assegurado não só pelo engessamento social, mas também pela ausência de empoderamento pessoal, pelas consequências diretas e indiretas das exclusões sociais sofridas, pela ausência de direitos civis essenciais, pela medicalização e genitalização dos corpos e do conceito de gênero, pela patologização das identidades transgêneras, pelo machismo, pela violência e pelo medo.

Esse sequestro social ao qual a população transgênera vem sendo vítima tornou-se tão pronunciado no Brasil que, mesmo com os pequenos avanços que vêm sendo conquistados nos últimos anos, sempre que há a tentativa de romper com esse paradigma social, seja através do emponderamento pessoal, seja pela educação formal, seja pelo poder econômico, a reação da sociedade é quase sempre violenta, uma vez que tal tentativa é vista como uma grave ameaça à ordem social vigente. Na grande maioria das vezes, essa violência assume a forma de uma brutal e alarmante violação de todos os direitos humanos fundamentais previstos não só pela constituição federal brasileira, mas também por organizações e tratados internacionais, como a corte interamericana e o tratado de Yogyakarta, que aborda, em especial, os direitos das pessoas transgêneras.

Tal processo de desumanização da população transgênera se tornou tão intenso que consagrou o Brasil como o país que mais comete crimes de ódio contra esse população em todo o mundo. Dentre todos os tipos de crimes, é necessário ter um olhar cuidadoso aos homicídios e especialmente aos feminicídios transfóbicos, que compõem 98% dos casos. Estes diferenciam-se de homicídios comuns pela crueldade, covardia e brutalidade dos ataques, onde ocorrem torturas, mutilação e desfiguração das vítimas. São realizados quase sempre sem motivo e muitas vezes por mais de um agressor, e a invisibilização das vítimas é tão grande que elas têm seus nomes e identidades de gênero apagadas pelas autoridades. Todas essas características tipificam, assim como ocorre com a população negra e indígena, verdadeiros crimes de ódio ainda não previstos no código penal.

Quando observamos os números da violência, a primeira coisa que salta aos olhos é o crescimento acentuado de 208% de 2008 para cá, onde os 58 casos notificados em 2008 subiram para 179 casos no último ano. Outro dado importante que pode ser observado é o aumento significativo da violência no período pós golpe, que marca um aumento do fascismo e do conservadorismo no país, evidente pelo elevado número de retiradas de direitos conquistados ao longo de décadas de militância. Nesse curto período de três anos os números de casos subiram de 118 em 2015, para 179 em 2017, com uma média de crescimento anual de 23%. Enquanto que no período anterior os números de casos subiram de 58 em 2008, para 118 casos em 2015, com uma média de crescimento anual de 11%. Com base nessa análise dentro da atual conjuntura política, é possível inferir que a violência contra a população transgênera aumenta conforme aumenta o poder estabelecido dos homens brancos cis heteronormativos.

Além dos crimes de ódio, cujo maior expoente são os feminicídios e homicídios transfóbicos supracitados, as exclusões sociais compõem um importante fator agravante para o estado geral de elevada precariedade ao qual a população transgênera se encontra. Entre todas as exclusões sociais sofridas, a exclusão familiar, indubitavelmente, é a mais séria e preocupante. Ela atinge, em sua maioria, os jovens de 14 a 18 anos, e compromete seu  desenvolvimento no difícil processo de preparo, crescimento e amadurecimento rumo à vida adulta. Além de retirar esse jovem do conforto, convívio e segurança da vida familiar, colocando-o diretamente na marginalização social.

Uma vez nesse espaço tão gentilmente cedido e reservado pela sociedade à população transgênera, estes se tornam muito mais susceptíveis e vulneráveis à todas as intempéries dessa marginalização. Altos níveis de analfabetismo, dependência química, infecções sexualmente transmissíveis – em especial o HIV, que afeta 40% dessa população – prostituição e vida carcerária precoce são apenas algumas das consequências diretas da marginalização social imposta pela exclusão familiar.

As demais exclusões vão perpertuar e aprisionar ainda mais essa população ao seu elevado estado de marginalização social. Dificultando enormemente o acesso à educação, saúde, moradia, emprego e cultura. Assim, a população transgênera sofre um verdadeiro genocídio, presa a um preconceito tão arraigado e à uma invisibilização tão elevada que seus nomes e identidades de gênero não são respeitados nem mesmo pela burocracia e administração do estado, não são materiais de estudo e pequisa pelos órgãos públicos, encontram-se excluidos do sistema previdenciário, não possuem qualquer tipo de política pública que lhes garanta acesso a serviços e direitos que lhes são comumente negados, têm as suas pautas ignoradas pelos governantes e não há nenhuma parcela da população que lhes defenda.

Desta forma, a população transgênera encontra-se em tal estado deplorável, que torna-se impossível que esta situação seja revertida sem que haja uma mobilização por demais setores da sociedade. É imprescindível que haja avanços nas pautas transgêneras para que essa sombra que recai sobre o nosso país seja removida, e para que todas as parcelas da população possam desfrutar de maneira eqüanime de todos os recursos, serviços e direitos que normalmente só estão plenos, não para a classe burguesa, mas para a verdadeira classe dominante de homens brancos cis heteronormativos.

*Mulher Trans, militante dos setoriais de mulheres e LGBT do PSOL Rio de Janeiro