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Foto: Vera Siqueira

Padre Mário Prigol, falecido ano passado, foi um combatente pelos direitos dos pobres. Certa vez, em 1968, ele abrigou no salão da igreja Nossa Senhora da Salette, no Catumbi, uma reunião de estudantes secundaristas. Lembro quando ele, preocupado, cochichou algo com Elinor Brito, da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço (Fuec). A polícia tinha estacionado várias viaturas na frente da igreja e queria fichar todos os participantes, prendendo os líderes. Foi um desassossego tamanho que Brito teve que berrar: “quem sair na carreira vai apanhar duas vezes: de nós, aqui dentro, e da polícia, lá fora!”.

Depois de demoradas negociações, com padre Mário em nossa intransigente defesa, fomos liberados, um a um. Alguns, mais visados, conseguiram escapulir do encaminhamento ao temido Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Em 1970, padre Mário e padre Agostinho Pretto, da centenária paróquia e da Pastoral Operária, foram presos. Anos de chumbo.

Lembrei desse episódio quando o tenente Argueles, do 5º batalhão da Polícia Militar, “visitou”, semana passada, uma reunião do PSOL, quando eu apresentaria o partido aos novos filiados – como o fiz. O mesmo oficial foi à sede da Faferj, naquele 23 de fevereiro, com igual intuito: fichar as lideranças e mapear a reunião.

Ele tinha uma planilha com outros encontros de movimentos populares, que também teria que “supervisionar”, por ordem de seu comandante. Ponderamos o óbvio: essa atitude era vedada pela Constituição, que, nos incisos IX e XVI de seu artigo 5º, assegura a liberdade de reunião, manifestação e expressão de pensamento. A presença de um policial ali era constrangedora das liberdades democráticas duramente conquistadas. Anotar nomes dos líderes, então, um absurdo total, típico de um Estado Policial!

“O passado não conhece o seu lugar: ele teima em aparecer no presente”, escreveu um outro Mário, o Quintana, poeta. Atualíssimo. Aprendizes de ditadores estão por aí, às vezes ostensivamente e “cumprindo ordens superiores”. Se não reagirmos, essa “Gestapo Carioca”, como a denominou o jornalista Ancelmo Góis, vai ampliar seus tentáculos e, de “fichamento” em “fichamento”, começar a querer proibir reuniões “incômodas” à ordem estabelecida. A extrema direita, que governa o Brasil, o Rio de Janeiro e outros estados, quer isso. Resistir é preciso!

Polícia para quem precisa

Na outra ponta, o que se vê? A diretoria do Flamengo tentando “empurrar com a barriga” as indenizações dos 10 meninos mortos no Ninho do Urubu. À reunião de negociação com as famílias enlutadas, para buscar um acordo, o presidente Landim – que só deu coletiva 17 dias depois do sinistro – sequer compareceu, e seu vice jurídico ficou poucos minutos. Omissão reveladora do grau de sensibilidade e solidariedade que os dirigentes do clube têm para com aqueles cuja guarda era de sua responsabilidade. Péssimo exemplo. Atestado de que o futebol é, cada vez mais, um show business, uma tenebrosa transação de compras e vendas milionárias, onde os corpos de atletas ainda em crescimento são tratados como objetos de pouco valor. Os garotos, suas famílias e a torcida do Flamengo não mereciam esse desdém.

Em Minas Gerais há 310 famílias devastadas, entre os corpos encontrados e os sepultados na lama criminosa da Vale. Também aqui o “espírito capitalista”, do ganho máximo e prejuízo mínimo, prevalece. As vítimas de Mariana, como as do voo da Chapecoense, até hoje aguardam reparação justa, sem consolo pelo que é impagável: as vidas de seus entes queridos. Os parentes dos assassinados em Brumadinho já estão sofrendo a mesma desconsideração.

Os algozes da esperança, mercadores da existência, contam com o esquecimento dos atingidos. É nosso dever lembrar sempre. E denunciar, cobrar, exigir. As vidas dos pequeninos e dos anônimos importam!

Chico Alencar é professor e escritor
Publicado originalmente no Jornal do Brasil (26.02.2019)