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Filho como embaixador revela inclinação imperial

Originalmente publicado na Folha de São Paulo

Dentre as sandices imperiais que entraram para o anedotário da história romana, talvez a mais afamada seja a de Calígula. No auge de seus conflitos com o Senado, o imperador planejou nomear Incitatus, seu cavalo de corrida preferido, para o cobiçado cargo de cônsul de Roma.

Infelizmente, os cronistas da época passaram despercebidos pelas virtudes de Incitatus: não sabemos se o cavalo dominava algum outro idioma além do latim, se era muito bem relacionado com animais da mesma estirpe ou se, simplesmente, tratava-se de um corredor impetuoso.

Brincadeiras à parte, difícil não lembrar o equino imperial ante o anúncio do presidente Jair Bolsonaro (PSL) sobre a indicação de um de seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), para o posto de embaixador brasileiro nos Estados Unidos.

Quais os predicados do “03?” Além de ser filho do presidente, falar inglês, supostamente fritar hambúrgueres e ser amigo dos filhos de Donald Trump, seria ele também um exímio corredor?

O anúncio nos diz mais sobre Jair do do que sobre Eduardo. Ao indicar o seu Incitatus para o mais importante cargo da diplomacia, o presidente revela o temperamento imperial de quem se acha acima das instituições, das leis e confunde o público com o privado, na pior tradição do “familismo” autoritário nacional.

Em outro arroubo imperial recente, na final da Copa América, o aspirante a Calígula esteve no coliseu do futebol para testar a popularidade de seu principal gladiador, o ministro da Justiça, Sergio Moro. No Maracanã, só faltou o polegar e a plebe nas arquibancadas.

Em 28 anos de carreira, o presidente e sua família mantiveram relações obscuras com milicianos, desviaram dinheiro público através de assessores fantasmas e laranjas e elogiaram ditadores, torturadores e demais criminosos.  Na Presidência da República, o caso mais recente é a compra de votos através de emendas parlamentares e da negociação de cargos para aprovar a reforma da Previdência na Câmara dos Deputados, o que o que foi reconhecido pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Em menos de seis meses, a ficha corrida de ataque às instituições é longa, receituário típico de regimes autoritários: Bolsonaro atropela o Congresso Nacional ao legislar de forma autoritária via decretos e ao reeditar medidas provisórias derrotadas pelo Parlamento ameaça o Estado laico ao anunciar um ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal; viola a Constituição ao defender o trabalho infantil; criminaliza opositores e movimentos sociais desqualifica a liberdade de imprensa e tolera a violência praticada por seus apoiadores, como vimos na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), durante palestra do jornalista Glenn Greenwald.

É farsesco identificar essa conduta imperial como resposta à degradação do sistema político brasileiro, porque o presidente apenas joga com a justa revolta da população, sem agir para enfrentar o problema de fato.

A nova política não pode prescindir das instituições, ela precisa fortalecê-las para torná-las mais republicanas, democráticas.

Essa é a responsabilidade dos progressistas: dialogar com a sociedade e apresentar um projeto de país que una justiça social e promoção da transparência e combate à corrupção.

Essa agenda não pode ser capturada por moralistas de ocasião e falsos outsiders. Somente através da boa política conseguiremos resgatar a cidadania e manter a democracia a salvo dos Incitatus de agora e outrora.