Entre os dias 8 e 11 de março de 2016, o seminário Cidades Rebeldes e Espaços de Esperança recebeu o geógrafo marxista David Harvey para um conjunto de aulas sobre direito à cidade. Ele fez parte da construção do programa do PSOL Carioca para as eleições 2016 e foi promovido pelo movimento ‘Se a Cidade Fosse Nossa’. Durante a semana, realizamos entrevista com Harvey no hotel Novo Mundo, atualmente com suas atividades encerradas e fruto nítido do processo detalhado pelo professor. Ele responde sobre as contradições geradas pelos megaeventos nas zonas urbanas e já nos alertava sobre um mundo anterior à chegada ao poder de Trump e o fascismo crescente no leste europeu.
Tradução: Gabriel Souza Bastos
PSOL Carioca: Qual tipo de cidade estamos clamando quando falamos sobre o direito à cidade?
Harvey: Eu acho que a resposta curta é: eu não faço a menor ideia! (risos) E eu acho que a questão aqui é que uma coisa é ter um projeto muito tipificado, organizado em um modelo sobre como o futuro deveria ser e outra é abrir portas para novas formas de desenvolvimento, que você não tem como prever o que acontecerá. E se você acreditar, como eu, que há uma enorme potencialidade entre os seres humanos para criar novas configurações, eu não faço a menor ideia do que as pessoas possam inventar e também o que elas possam criar de novos estilos de vida. É, portanto, importante termos a liberdade para explorar novas potencialidades que todos nós temos. Eu acho que, pelo motivo que temos frustrações ao redor de, como você pode ver, em movimentos políticos, que, às vezes, se move para a esquerda ou para a direita, é porque as pessoas sentem as potencialidades bloqueadas. Então, pra mim, o direito à cidade se trata ir abrindo a cidade para fazer algo diferente e eu espero que acabaremos tendo cidades diferentes, fazendo coisas diferentes para que cada cidade possa explorar sua própria personalidade. Então, ao invés de ir pra Barcelona e ver exatamente as mesmas lojas que eu vejo na cidade do México, que eu vejo em Nova York, eu iria para me deparar com algo radicalmente diferente.
Então, novamente, para mim, o direito à cidade diz respeito à potencialidade de criar um futuro onde possamos ditar os avanços. Eu não tenho modelos sobre como a cidade deveria ser. Digo, eu tenho minhas visões particulares sobre isso e eu acho que todos deveriam ter a possibilidade de pensar a respeito de suas diferentes cidades, como elas deveriam ser e de como isso seria.
PSOL Carioca: Qual é o papel das cidades no processo de acumulação de capital?
Harvey: Bom, conforme eu venho dizendo, vem da reserva federal dos Estados Unidos. Eu comentei, nos Estados Unidos, nós temos o hábito de sair de crises construindo casas e enchendo-as de coisas. O que é, de certa forma, o que aconteceu depois de 1945 e aconteceu novamente depois de 2000. Meu argumento seria que nós também entramos em crises construindo muitas casas e enchendo-as de coisas e especulando nos valores de habitação.
Então, cada vez mais, o capital excedente que existe no mundo vai em busca de projetos urbanos. Se você olhar para os motivos aos quais a urbanização governa os Estados, é algo que você verá nessas fotos de Dubai… Quero dizer, são urbanizações loucas! Trata-se de um uso insano de capital, materiais e etc para construir uma espécie de urbanização que não faz sentido para as populações em massa. O mesmo também seria verdade na forma como os recursos estão sendo gastos em megaprojetos enquanto as necessidades da população permanecem intocados.
Nós temos incríveis situações nos Estados Unidos onde, mudando o abastecimento de água, eles economizaram muito dinheiro em uma cidade chamada Flint. Agora, as pessoas estão sendo atingidas por envenenamento de laboratórios e tudo isso para economizar dinheiro para construir um megaprojeto. A urbanização, portanto, sempre absorveu o capital excedente, mas agora é uma das principais formas às quais o capital excedente absorve e, o que estamos vendo é o uso da urbanização mais para criar oportunidades de bons investimentos do que para criar boas cidades para se viver.
PSOL Carioca: Qual é a necessidade do capital em colocar esse capital excedente em formas não produtivas? Não poderia ser reinvestido em formas produtivas? Porque eles têm de colocar em algo que não é produtivo?
Harvey: A resposta simples é porque estão se esgotando oportunidades produtivas em outros lugares. O capital é uma máquina de crescimento. E ela cresce e se ajusta exponencialmente, o que significa que você vai tendo mais e mais capital sendo gerado. Então, a rigor, o capital excedente no mundo é agora o dobro do que era, digamos, há 25 anos atrás. E nos próximos 25 anos, será o dobro do que é agora. Então, você meio que diz “bem, quais são as oportunidades lucrativas para investimentos? ” Se o capital simplesmente construísse coisas para durar, não haveria mercado. Então você precisa criar novas necessidades. Criando novas necessidades, uma das coisas que você faz é criar um sistema urbano. Isso significa que, se você quiser viver, você precisa, pra dar um exemplo, construir estradas. Então, o que você faz é estar constantemente procurando criar novas necessidades, e a urbanização é uma dessas áreas onde a mudança de estilo de vida se trata de criar a população demandante.
Então, por exemplo, a criação dos subúrbios estadunidenses. Após 1945, criou-se uma enorme demanda, dando uma enorme área para o capital produzir apelos de demanda, para produzir geladeiras, para fazer piscinas, todas essas coisas. Portanto, simplesmente criando um estilo de vida urbano, criou-se uma demanda. O que estamos vendo agora é uma tentativa de transformar as cidades também em seus estilos de vida. Por exemplo, o capital não gosta de construir coisas para durar. Porque, se as coisas durassem, não haveria mercado. Então você precisa que as coisas sejam instantaneamente obsoletas.
É por conta disso que grandes jogos são ótimos, porque só duram 10 dias, ou seja lá quanto durem, e é isso! Então você constrói todas essas coisas simplesmente para um espetáculo. Então cada vez mais, o que estamos observando é um estilo de vida urbano que diz respeito ao consumo de um espetáculo instantâneo, porque não tem como voltar no tempo do consumo. E é assim que o déficit absolve o crescimento, o crescimento ajustado. Assim, você tem essa mudança de fazer coisas para durar e depois fazer coisas que não duram, para ter essa mudança de fazer coisas que encontrem as necessidades imediatas das pessoas, fazendo espetáculos que atraiam as pessoas.
Então, em todas essas áreas, você começa a ver a transformação do que se trata o capital. Mas também conectada com a transformação do que se trata o estilo de vida urbano, do que se trata a vida cotidiana na cidade.
PSOL Carioca: Como é que o capital disputa a cidade, através de um ponto de vista ideológico-espacial? Qual é o propósito do capital em fazer essas grandes intervenções na cidade?
Harvey: Bom, há vários motivos, por exemplo, as companhias de construção e os interesses de construção têm o propósito de implementar construções. Eles não se importam o que construir, eles ganham dinheiro construindo coisas. Os financiadores, em particular, e os desenvolvedores podem também pegar seu dinheiro de volta bem rápido. Então, eles não estão investindo em um produto em longo prazo. A grande pergunta é: “será esse investimento lucrativo e produtivo? ”
Há duas coisas diferentes aqui. Alguns desses megaprojetos são, de fato, novidades para remodelar a cidade de formas que sejam produtivas para a cidade, podendo construir novas redes de transporte, você constrói um sistema de metrô. Brevemente, se você olhar para os jogos olímpicos gregos, uma das coisas que eles fizeram foi construir um sistema de metrô, o que é muito bom. E, de fato, está sendo muito usado, e você diz “esse é um investimento produtivo”. Ele esteve conectado com as olimpíadas e, por sua vez, beneficiou um grande número de pessoas na Grécia. A outra forma de investimento é construir um enorme estádio que ficará vazio posteriormente. Ninguém sabe o que fazer até, eventualmente, simplesmente se esvaziar.
Então temos dois tipos de investimentos. Alguns que estão ligados a esses megaeventos podem ser vistos como investimentos produtivos os quais podem contribuir para o bem estar da população na cidade. Mas há outros que não, é importante fazer essa distinção. Se você construir um estádio de futebol, por exemplo, e um clube de futebol jogar nele pra sempre para então ter um uso para ele, goste você ou não de futebol, é outra coisa. A grande questão é porque subsidiar esses muito ricos clubes de futebol?
Então há a possibilidade de usar algo de um megaevento para criar infraestruturas produtivas que precisam ser criadas para beneficiar a população em larga escala. E então, há outros tipos de investimentos que não tem nada a ver com isso, que não trazem ajuda alguma para a população no geral. Aos quais simplesmente respondem por um desenvolvimento de Estado para abrir rendimentos de habitação ou algo desse tipo, onde se remove populações pobres, se ejeta populações que você não quer na cidade e lhes expulsa para a periferia. Então, há todos esses tipos de desigualdades que são geradas a partir desses mega investimentos. Mega investimentos que, como eu disse, ficam lá vazios e não há nada de produtivo para eles permanentemente. E, de fato, são difíceis de se manterem e caras para se derrubarem. É o que nós chamamos de elefantes brancos. Você tem esses investimentos do tipo de elefantes brancos, vários investimentos desse tipo. Mas, como eu mencionei, em Atenas, por exemplo, o metrô não foi um elefante branco, assim como a maioria dos estádios foram.
PSOL Carioca: Qual é o papel, a partir do ponto de vista ideológico, qual o significado de ter um grande evento como os jogos olímpicos no sentido de produzir consenso na população para se fazer essas grandes transformações?
Harvey: Sim, é claro, grandes cidades estão muito em competição umas com as outras. Há essa pergunta de se você consegue marcar uma cidade? Sabe, você poderia marcar a cidade? E parece que nesses dias, para conseguir um marco adequado você precisa de grandes… Digo, Buenos Aires fez o Puerto Madero e assim, Rio tem que fazer o seu porto. Baltimore fez em seu porto, Barcelona também. É parte de um exercício de marca que tenta dizer: “bom, nós temos tudo o que essas outras cidades têm”. Isso soa um pouco louco, quero dizer, porque você construiria em Barcelona uma loja de conveniência quando eu poderia ir nela em Baltimore ou qualquer outro lugar, sabe? Então há um hiato do processo em curso.
E outra coisa, e eu acho que é fundamental aqui, é que as cidades não são mais de fato sendo construídas para se viver na maior parte dos lugares. Elas estão sendo na verdade construídas para se fazer lugares para se investir. E eu acho que essa é uma diferença crucial. Por exemplo, nós tivemos um dos maiores booms de construção já vistos na cidade de Nova York agora mesmo. Estão construindo muitos condomínios muito caros, arranha-céus tremendamente, muito caros! Ninguém pode pagar para se viver neles. Então, quem está investindo? Bom, pessoas fizeram dinheiro na China, pensaram em fazer investimentos seguros do outro lado do mar, então estão construindo condomínios em Nova York. Ou pessoas dos Estados do Golfo, ou oligarcas russos. Então todos esses lugares, a maioria não há ninguém morando lá! E nós temos uma crise de preços acessíveis de moradia em Nova York, que é absolutamente imenso. Ao mesmo tempo, temos esse grande boom de construção orientado apenas para que as pessoas invistam. E isso está acontecendo em praticamente todas as cidades que eu já fui. Eu fiquei surpreso com essa luta acontecendo na Turquia. Em Istanbul, por exemplo, e cidades turcas por toda parte, pessoas construíram, essas pessoas de classe média construíram coisas não para se morar, mas para se guardar dinheiro, guardar valor. E a mesma coisa está acontecendo em Ramallah, sabe? Ok, a Palestina está em um tipo terrível de condição. E o que a classe média na Palestina está fazendo é construir arranha-céus. Não para as pessoas morarem, mas apenas para se investir.
Então, cada vez mais nós vemos como um tipo de paisagem urbana, que se trata de oportunidades de investimento, não se trata de ninguém querendo viver lá. Digo, uma das coisas que fazemos em Nova York é quando você dá uma volta por volta de meia noite e vê quantas luzes estão ligadas nos prédios. E você vê esses edifícios completamente escuros, ninguém está morando lá. E nós temos essa crise de moradia por um preço acessível! A essa altura, você pode dizer que isso é irracional, é insano! E no Rio nós temos um processo de urbanização que é que nem esse. Então eles vão gastar dinheiro refazendo sua zona portuária e transformando-a num tipo de espetáculo para se consumir e isso pode ser lucrativo. Pessoas podem ir pra lá e acabar sendo popular, quem sabe, mas ainda não estão se encontrando com as verdadeiras necessidades das pessoas.
PSOL Carioca: Há mais casas do que pessoas vivendo em casas. Isso tem também algo a ver com o uso do espaço urbano para fazer dinheiro?
Harvey: É o que está acontecendo em Ramallah. Lugares como esses, sabe, você simplesmente é dono do lugar, você constrói seis prédios de armazenamento e tudo fica vazio. Talvez você ocupe o andar térreo e deixe o resto vazio, porque você não quer ninguém por lá.
PSOL Carioca: É um problema estrutural.
Harvey: Sim, sim. E está acontecendo em todas as cidades que eu conheço. É apavorante.
PSOL Carioca: Dadas as experiências em outros países, tais como Grécia e Espanha, o que podemos esperar no fim do ciclo, não apenas em termos econômicos, mas também no ponto de vista do consenso ideológico? O que é um exemplo da reestruturação urbana?
Harvey: Sim. O caso de Barcelona está fortemente ligado moradia e as execuções hipotecárias acontecendo e o novo prefeito. O novo prefeito, imagino, foi o líder do movimento antiencerramento. E eu acho que o que estamos vendo, na verdade, é o que vem sendo visto nos últimos 15 ou 20 anos, é o que eu chamo de política do dia a dia nas cidades, que fizerem um terreno fértil para muito ativismo político, para muitos movimentos políticos. A dificuldade aqui é que não há clareza de composição de classe da mesma forma que, eu diria, de capital versus trabalho numa fábrica, porque as pessoas de classe média são atingidas por alugueis altos e especulações de propriedades. Pessoas de classe média são expulsas, então, há uma configuração política diferente se você olhar para quem se organiza com os descontentamentos urbanos. Eles geralmente formam um tipo de configuração muito específica. Então, por exemplo, movimentos dispostos pela cidade podem se concentrar em vários aspectos da vida urbana. Cada um está correndo atrás de suas preocupações particulares, as quais, dependendo de onde você esteja, você enfatiza segurança, proteção, esse tipo de questão. Nós tivemos nos Estados Unidos, essas ocupações noturnas. Ocupações na cidade durante a noite, meio que dizendo “nós queremos criar uma cidade que seja segura! ” Então, há movimentos desse tipo. E há movimentos que tratam educação, assistência de saúde e movimentos muito, muito específicos. Se você botar tudo isso junto e dizer “ok, está acontecendo um descontentamento profundo e generalizado com as qualidades de vida urbana”. E há uma maneira na qual possamos reunir um movimento em volta desses diferentes descontentamentos que diria “ok, nós vamos apoiar você, lidando com seus descontentamentos se você me apoiar lidando com meus descontentamentos, para que possamos nos unir”? Eu diria que o movimento anti-gentrificação com… digamos, direitos LGBTs, digamos…
Então, nós vemos alguns movimentos indo nesse tipo de direção de coalizões, e eu acho que a ideia dos direitos à cidade seria para tentar encontrar um caminho para reunir muitos desses diferentes descontentamentos em um movimento que não sufoque a diferença – isso é uma coisa importante! – o que volta ao meu argumento anterior, que nós desejamos estimular a diferença ao invés de suprimi-la. Então, você estimula a diferença, ao mesmo tempo diz “nós queremos ter unidade em certo ponto, ao redor de certas questões. Nós queremos evitar esse processo do capital construir cidades para investimentos, não para se morar. Nós queremos evitar essas coisas. Nós queremos algo radicalmente diferente”.
PSOL Carioca: Há algum lugar no mundo que surgiu com um tipo de solução, não para homogeneizar, mas para reunir a classe? Como podemos avançar na consciência de classe nesses movimentos?
Harvey: Bom, eu acho que há muitos, de forma muito clara, tipos onde essas coisas se misturam. O problema é que geralmente eles não ficam juntos por muito tempo. Se você olhar para a coalizão na Turquia, no processo de Gazi, é muito diverso, dirigido para juntar muitos grupos diferentes. Se você olhar para a composição original do que aconteceu no Cairo na praça Tarhir, foi muito diverso e foi uma coalizão, uma coalizão muito solta de forças muito distintas. O problema sempre é as forças que entram na coalizão. Os movimentos sociais, como no início da Praça Tahrir, do Parque Gazi, que concordaram de que não faziam ideia de como eles iriam lidar com a reação, quando as forças reacionárias entraram e dividiram numa linha diferente.
Digo, até mesmo na Ucrânia, o movimento inicial foi, na verdade, uma coalizão. E então, ela é destruída por um tipo de diferenças étnicas nacionais. Se torna algo geopolítico. Então agora, temos o desastre da Ucrânia, que vem com um movimento inicial que era, de certa forma, uma junção com cruzamentos étnicos e de classe. Portanto, revela que a esquerda tem de reconhecer que essas coisas podem se juntar. A maior dificuldade é evitar de ser fraturado e destruído por todas as forças entrando e dividindo. A força dos elos que existem nessas uniões não é muito boa e muito trabalho há de ser feito para garantir que essas alianças existam.
Então, no incentivo daquela ideia de que, olhando para muitos dos movimentos sociais, os diversos movimentos sociais podem se juntar ao redor de um projeto em comum. Mas fico aflito com o fato de que eles tem sido tão facilmente fragmentados e destruídos. E isso pra mim é o maior problema. Mas você pode olhar para muitos exemplos do que eu estou falando.
PSOL Carioca: O que a esquerda tradicional, organizada em sindicatos e partidos políticos acumular com essas experiências?
Harvey: Bom… (risos) eles devem aprender a se adaptarem. Digo, a coisa que sempre me impressiona, na história do capitalismo, é o quão flexível o capital sempre foi. Ele se move muito rápido, muda muito rápido. Mas, ao mesmo tempo, a esquerda tem sido tipicamente muito inflexível. E os partidos políticos e os direcionamentos políticos estão congelados no tempo, muito da esquerda está. E eu acho que temos que aprender a sermos mais flexíveis muito mais abertos e poderíamos concordar que a tradicional esquerda dos partidos políticos que não aprenderam a ser flexíveis, se tornaram irrelevantes. E essas pessoas, eu acho, esses partidos ficam cada vez menores ou simplesmente se tornam, como aconteceu, de certa forma com o PT aqui, se torna uma ferramenta de reestruturação. Isso aconteceu com o partido trabalhista na Grã Bretanha, essa é uma história semelhante. E se você fizer isso, por que você votaria neles, quando, na verdade, eles estão fazendo ações que são antagonistas aos seus interesses. Então, deve haver algo de diferente.
Então, o que nós vimos é a total aflição dos partidos políticos e a aflição do processo político e a maioria da juventude que você está se referindo, meio que, se você perguntar como ela pensa, eu acho que a melhor caracterização é um tipo solto não-ideológico tipo de anarquismo cultural. Às vezes é formulado explicitamente como anarquismo, mas eu acho que a maioria das pessoas não gostaria de ser chamada de “autonomista”, e eu acho que muito disso é compreensível. Mas se essa forma permanecer, então, o problema é como criar uma expressão política a partir desses descontentamentos. E o que nós vimos na Grécia é meio que uma ascenção do Syriza, que é um partido político alternativo, e enquanto está lá, a pergunta é se está se tornando um partido político como qualquer outro? Podemos tem o mesmo problema na Espanha, no que se mexe na arena política, o que acontece é que começa a se comprometer, jogar jogos, e isso é meio que um problema. Mas eu acho que você não consegue, de fato, trazer grandes mudanças para qualquer sociedade sem ligar com a forma que o papel político é organizado a nível geral de sociedade. O que significa que, em determinado momento, você tem que lidar com isso ou se tornar parceiro. Mesmo que você só tenha que desmantelar esse tipo de coisa, você ainda vai lidar com isso. E, cada vez mais, o impulso vem dos mais diversos lados. Por exemplo, a direita nos Estados Unidos está se colocando muito para desmantelar o poder do Estado sob certas coisas. Não sobre seu direito de aborto… Coisas piores: “é hora de destruir o poder do Estado e do governo federal! De fato, eles estão provavelmente fazendo mais estrago ao Estado do que a classe trabalhadora jamais fez. De certa forma, eu poderia meio que dizer “vá em frente, desmanche o Estado ” e então ver o que acontece.
Mas eu acho, eu estou muito preocupado com o fato de que muitas pessoas às quais você se refere estão relutantes até mesmo para discutir a grande questão de como discutir sobre o poder do Estado, como confrontar o poder do Estado e, se necessário, como usar o poder do Estado de forma construtiva, em oposição às formas destrutivas, atualmente em curso.
PSOL Carioca: Quais as ferramentas a ser usadas para aumentar a democracia popular, participação popular, radicalizar a democracia em uma administração municipal?
Harvey: Eu acho que há muitas interessantes tendências em curso, as quais, muito da esquerda que é hostil ao poder do Estado se tornou mais interessada em ganhar o poder local estatal e usando esse poder estatal local, para eventos bastante inovadores e progressistas. Por exemplo, nos Estados Unidos, Seattle e Los Angeles, duas cidades bem grandes, elegeram vereadores que agora aumentaram o salário mínimo de quinze dólares a hora. E eles estão fazendo coisas bastante progressistas. Então, há um tipo de novo interesse em ter acesso ao poder a nível municipal e usá-lo para vários aspectos desse tipo. Por exemplo, há lugares chamados de “cidades santuários” nos Estados Unidos agora, onde o governo local não usará as forças policiais para reforçar a lei de imigração. Então, se alguém for pego pela polícia, em Baltimore, por exemplo, eles não fazem perguntas sobre a situação de imigração. Então, não tem como, se alguém for preso em Baltimore, ser expulso como um imigrante ilegal. E há muitas cidades agora, as cidades estão se tornando ilhas de políticas progressistas. E eu acho que isso é um tipo de coisa muito encorajadora. É claro, nós temos visto na Espanha, o pavor de Barcelona conseguir prefeitos progressistas. Então há essa tendência nessa direção, o que eu acho que é muito encorajador. E eu acho, que em certo grau, desde que o poder local é de certa forma compreensível e aproximável, ao mesmo tempo que o poder federal, nos Estados Unidos não é. As pessoas acham que elas podem se engajar com políticos locais de forma que seja mais significativa. Então, é uma parte de uma escala de um interessante fenômeno aqui, para onde o ativismo local está se movimentando. E novamente, eu acho que é bastante encorajador o que isso esteja acontecendo.
PSOL Carioca: Nessa experiência que você mencionou, como que eles podem avançar na participação popular, na administração? Há algum tipo de experiência que você ache interessante, por exemplo?
Harvey: Sim, bom, sobre essa participação popular, o que eu acho de mais importante é estar havendo mobilização popular. Por exemplo, a transformação de Seattle. A câmara municipal tinha muita proximidade com organizações sociais locais que de fato construíram um poder político e começaram a mobilizar bairros. Então, isso não acontece do nada. Digo, o poder político que está sendo feito na base que nos levou nessa direção em Los Angeles. Penso, mais uma vez, que o trabalho político está sendo feito em grande parte nesse caso, mais em torno de diferenças étnicas. E o direito à cidade em Los Angeles tem uma composição bastante interessante. Eu tive um ótimo dia lá com a população coreana, que fazia parte dos movimentos pelo direito à cidade. E eles vieram com várias marionetes, os mexicanos, tocando música mexicana, com marionetes verdes dançando música mexicana, e a população negra também têm avançado. Quero dizer, se estava celebrando a diferença étnica. E penso que essa celebração de diferenças étnicas levou a transformação da subjetividade política dos membros da câmara municipal que não mais querem simplesmente os benefícios sobre os coreanos e “que todos vão pro inferno! ” Eles estão colaborando muito mais sob o reconhecimento do trabalho, aumentando o salário mínimo, o que é algo que beneficia a todos, e eles estão colaborando com esse tipo de coisa. Mas é preciso, penso eu, certa mobilização política. Penso que populações, não tendem a instintivamente começar a fazer coisas. É necessário haver trabalho em nível de bairros. E, onde quer que você veja algo parecido, o que está acontecendo em Seattle e Los Angeles acontece porque as pessoas estão trabalhando nesse nível há um tempo. Então, é claro, o que acontece agora foi trabalhado nesse nível. E há agora, para a campanha presidencial, algo, para a surpresa de todos, um socialista. De fato está ganhando bastante apoio e todos estão cientes de onde isso vem, porque as pessoas tem falado disso. E os grandes partidos não estiveram ouvindo, eles não sabiam que isso estava em curso e agora se surpreendem com o que está acontecendo.
PSOL Carioca: O que pode ser usado e o que deveria mudar para melhorar, ajudar movimentos, por exemplo?
Harvey: Sim, nós temos agora um orçamento participativo em Nova York. Sabe, Porto Alegre chegou em Nova York (risos). Não é universal em toda a cidade. Cada vereador em seu distrito tem certa quantidade de dinheiro que eles podem usar frequentemente. Metade dos vereadores agora organizam reuniões de orçamento participativo, sobre como usar esse dinheiro. Isso é um mecanismo que estimula tipos de participação popular. Eu sempre fiquei impressionado pelo fato de que até em Porto Alegre, a quantidade de dinheiro envolvido era, nada mais que cerca de 40% a 50% em orçamento participativo, no máximo. Era, portanto, um pouco menor do quanto foi pensado e menos significativo que um megaprojeto, decidido em bases completamente diferentes. Mas foi uma ampla forma de mobilização popular. Eu não sei quanto tempo durou por lá. E eu acho que é um mecanismo. Então, um mecanismo pode gerar outro mecanismo que vai ainda mais longe e que fica lá, tornando-se um tipo de rotina que as pessoas percebem não ser tão fundamental em suas vidas, então não se importam com isso, daí a participação popular sai de cena se não for parte de um movimento em andamento que se move disso para outro nível de controle político, participação política.
PSOL Carioca: Portanto, na sua opinião, quais são as raízes da polarização?
Harvey: Eu acho que há uma alienação amplamente difundida nas populações nesse momento. As pessoas estão alienadas do processo político. Estão alienadas umas das outras, alienadas com sua natureza, e a alienação produz políticos vociferando frustrações. E a frustração pode ser mobilizada tanto para a direita quanto para a esquerda. Penso então que é uma batalha, e eu acho que agora mesmo a esquerda não está muito capacitada sobre como se engajar nessa batalha de forma mais consistente. E isso acontece, em parte, muito pela esquerda ainda estar trancada em formas muito antigas de pensar e não consegue lidar com novas questões trabalhistas que estão surgindo. Então eu acho que nós vamos ver movimentos, e como você bem sabe, já vimos nos Estados Unidos movimentos populistas de direita, que sempre se fortalecem com manipulação, com poder político. Digo, as pessoas gostam de falar sobre o tea party enquanto um movimento populista, mas é fortemente enraizado por ultrajados capitalistas de direita. Então, trata-se de um veículo para eles tentarem disputar o poder em Washington, para disputar na maneira de se fazer lucro. Portanto, estamos vendo movimentos desse tipo e a Europa tem um tipo fascista de movimento muito forte e, em alguns lugares, é abertamente fascista, como na Hungria e na Polônia, por exemplo, o que é O problema político. Então temos uma figura como o Trump, que é o típico fascista ao estilo Mussolini nos Estados Unidos, onde muitas mudanças estão em andamento, muitos descontentamentos seguem essa direção. Penso, portanto, que é uma situação muito difícil e acho que a esquerda tem que se mobilizar consistentemente de forma reativa.
Acho que parte do problema, nós já falamos sobre isso, a esquerda é demasiada cautelosa, um pouco assustada de ser retratada como louca, insana, ou algo assim! Então nós temos um mundo insano e você não é permitido de chama-lo de insano, então você é chamado de insano! (risos) Nós deveríamos estar olhando para o mundo e ridicularizar a insanidade: “Isso é loucura! Sempre tem capital excedente por aí! ” Com todo esse excedente de trabalho, temos muitas coisas para fazer e porque não estamos fazendo? Porque não é lucrativo! Isso é perda de tempo, então nós construímos coisas, usamos muitos recursos, fazendo coisas insanas, que não beneficiam ninguém. Novamente, apenas para deixar parques olímpicos por toda parte, o que é adorável de se olhar, mas em quinze anos, haverá muitos parques desses vazios.
Quero dizer, esse é o futuro louco que estamos olhando. E a esquerda deveria ser muito mais vigorosa em seus financiamentos. Muito da esquerda fez a afirmação de que podem gerir o capitalismo melhor que o próprio capitalista. Mas penso que deveríamos estar desmantelando o capitalismo, substituindo o capitalismo, não o gerenciando. Está se tornando inimaginável, de qualquer forma. Então, porque fingir que se pode o gerenciar se tudo que se pode fazer é chegar no poder e facilitá-lo, como partidos socialistas recentemente o fizeram?
PSOL Carioca: Sobre Sanders, qual é a sua opinião a respeito? O que ele representa e quais são as possibilidades, mesmo agora, com o jogo eleitoral? E, após isso, o que estaria aberto com esse fenômeno?
Harvey: Bom, se trata de um tipo de poder a partir da mobilização do voto da juventude, a rigor. E então, penso que quem votou em Obama ficou desiludido porque ele não fez duas coisas. Primeiro, ele não manteve a mobilização que criou, no lugar disso, tornou-se um tipo muito convencional de presidente. Na verdade, mais do tipo ativista do que muitas pessoas imaginavam. Mas ele tinha que lidar não só com o completo ódio da oposição mas também da ala da direita. Que começou a se construir, na verdade, sob a Clinton. É muito difícil de entender porque a direita odeia Clinton da forma que eles odeiam, mas acho que há uma clara divisão geracional nos Estados Unidos. Digo, houve uma pesquisa, três ou quarto anos atrás, demonstrando que cerca de 48% das pessoas com menos de 25 anos disseram que o socialismo era ok. Onde eles leram sobre isso? De onde eles vieram? Eles não disseram que eram a favor do socialismo, eles simplesmente não eram hostis a ele. Eles simplesmente disseram “o que há de errado com isso?” E agora você tem essa geração que está se tornando eleitora.
Então, a votação entre Hillary e Sanders: Sanders leva 70% ou 80% dos votos com menos de 30 anos, até mesmo entre as mulheres. Mulheres jovens não gostam da Hillary, elas votam no Sanders. Então, a juventude está totalmente do lado dele. Isso pode ser meio que uma coisa da guerra fria, quando Churchill disse que “se você é jovem e você não é socialista, você não tem sentimentos, mas se você é socialista aos 40 anos, você não é inteligente” (risos). Esse tipo de coisas do Churchill, talvez, de certa forma, quando as pessoas começam a ter filhos e vão morar nos subúrbios, suas subjetividades políticas passam por certas mudanças, sem dúvida.
Então, Sanders está mobilizando isso, e é muito interessante que ele tenha esses enormes comícios onde ele diz que “nós precisamos de uma revolução política nesse país”. Essa é uma linguagem que seria inimaginável três ou quatro anos atrás. Ele diz que nós precisamos de uma revolução política e todos dizem “sim, precisamos! ” E penso que algumas das pessoas que estão no Tea Party nesse momento poderiam, provavelmente, votar em Sanders. Isso porque eles têm problemas com coisas dentro do próprio Tea Party. E ele, de certa forma captou esse sentimento.
E essa geração da juventude, em todo o mundo, enfrenta uma péssima condição de oportunidades de emprego. Quero dizer, para uma coisa que eu escrevi outro dia, me disseram “é difícil para todo mundo que tem filhos saindo da faculdade com um diploma e acabam servindo café numa lanchonete”. Eu achei isso muito engraçado por que é isso que minha filha está fazendo! (risos). Então, as pessoas não têm oportunidades de emprego. E é engraçado brigar com a minha filha sobre isso. Ela tem 26 anos e não está se estabelecendo em nada, acabou de ser demitida desse café e eu nem sei o que ela está fazendo agora (risos). De qualquer forma, eu falo como um típico pai “você tem que encontrar um trabalho permanente” e ela diz “sim pai, mas eles são todos alienantes, não? ” (Risos). “Você que fica pensando em alienação, por que eu deveria pegar um trabalho alienado? ” (Risos). E é meio que… “Bom, então vá arrumar um trabalho alienado!” (risos).
Então, penso que a política nos Estados Unidos nesse momento, e, diga-se de passagem, a política nos Estados Unidos é mais instável do que em todas as partes do mundo. Nós vimos que essa instabilidade muda muito rápido, por exemplo, olhe o que aconteceu com os direitos gays. Em 15 anos, simplesmente veio daquilo pra isso. E todos agora meio que acham que não é um problema os direitos LGBTs. Sim, mas a extrema direita ainda acha. Mas para a maioria da população, isso não é problema. Então, os EUA mudou e nós podemos estar no início de uma coisa que seja o ascensão de algo muito mais… Uma ala do partido democrata estaria muito interessada em ver, se Hillary ganhar, o que provavelmente acontecerá, o que acontecerá com o voto de Sanders. E ela já está se apropriando da linguagem de Sanders. Ela já está dizendo “nós vamos lidar com a dívida estudantil, nós vamos ter que fazer todas essas coisas que ele está falando”. Então, ela está dizendo coisas que ela vem adotando dele. E esse é um dos motivos para as pessoas não confiarem nela. Porque ela muda de opinião e depois volta atrás. Ela recebe uma indicação. É possível que Sanders possa liderar a separação para um partido alternativo, é possível.
PSOL Carioca: Estão falando sobre isso nos EUA?
Harvey: Não, ele não está falando explicitamente sobre isso, mas eu acho que muitos de nós acham que se trata de uma possibilidade bem real. E se os democratas continuarem com os democratas da hegemonia estabelecida, na linha de Clinton, que vai nos dar livre comércio, mais do mesmo, se continuar com essa linha pró capitalista entre os democratas, nós talvez vejamos um racha da esquerda democrata para algo diferente. Então por que o partido democrata muda para refletir que uma base forte, uma base ativa agora está contemplando políticas socialistas? Vai sair de uma coisa pra outra e então veremos o que acontece. Pode ser. Mas terceiros partidos nunca duraram nos EUA por muito tempo. E os políticos são muito receosos ao tentar criar um. Mas Sanders talvez o faça…
PSOL Carioca: Qual é a importância de um partido?
Harvey: Em ambos partidos, esse claro descontentamento que trabalhamos – isso é a linguagem usada pela hegemonia estabelecida – que não era clara um ano atrás, mas há algo se separando. Digo, occupy Wall Street colocou a desigualdade social na agenda. Antes do occupy, você não podia falar sobre desigualdade. Agora é um grande ponto de discussão. Agora a grande questão é o poder entrincheirado da ordem, que ocupa ambos partidos políticos. Eu chamo de partido do Wall Street, está em ambos partidos, controlando interesses em ambos partidos. Então, ambos partidos tem pedaços que não estão sob controle de Wall Street, mas o centro de ambos partidos é controlado pelo Wall Street. E eu acho que há um claro senso de que há algo de errado com o fato de que todos secretários de tesouro, de Clinton pra frente, vieram do Goldman Sacks. Goldman Sacks controla a economia do país! Bernie Sanders falou sobre isso e todos disseram “sim! ” Então, há um desencantamento com a ordem estabelecida para ambos. Os dois mais cotados para a candidatura republicana são odiados pela ordem. Tanto Cruz quanto Trump. Na verdade, Cruz, em muitos sentidos, é pior que Trump. Ele é um direitista raivoso, odiado por todos seus colegas em Washington. Então, ele é odiado por todos os políticos estabelecidos e todo mundo sabe disso. Então, na verdade, você vota nele porque ele é totalmente impopular com seus colegas. Ele é realmente mais nojento que o Trump. Trump é maluco, simplesmente maluco. E eu acho que quando se chega ao poder, será meio que “ah, ok, nós podemos fazer isso. Ah, ok, nós não podemos fazer isso”. Quero dizer, ele seria pragmático, enquanto Cruz é ideológico, absolutamente um punho da direita. Então eu temo ele mais do que o Trump. Mas, novamente, no lado republicano, há um total descontentamento com a ordem estabelecida. E no lado democrata não há um total descontentamento, mas um sério descontentamento com a ordem democrata, que é a ordem de Wall Street. Uma das coisas que Sanders faz o tempo todo é dar uma ênfase com sua desconexão com Wall Street. Ele diz: “eu financio minha campanha, ela é financiada pelo Goldman Sacks”.