Marielle não teve tempo de ver outras mulheres ocupando os mesmos espaços institucionais que ela. Mas floresce. Em mim, nas minhas companheiras, em cada morador de favela
Hoje faz dois anos que o Rio de Janeiro ecoa uma tragédia que avançou nossas fronteiras e repercutiu mundo afora. São 731 dias sem que saibamos quem mandou matar Marielle Franco e atropelou, brutal e fatalmente, a vida do seu motorista, Anderson. Um luto que não cessa pela falta de respostas sobre o assassinato, agravado pelas infindáveis notícias falsas sobre a sua vida e o seu caráter que ainda teimam em circular.
Marielle, é preciso reforçar, foi uma mulher negra nascida na Maré – esse complexo formado por 16 favelas em que se amontoam e se espremem mais de 130 mil moradores -, que iniciou sua militância política ainda no pré-vestibular comunitário, estudou sociologia, fez mestrado em administração pública. Estudando, ela rompeu um ciclo que a condenava a ser mais uma nas estatísticas que tentam nos definir. Erguendo bandeiras, foi a quinta vereadora mais votada entre os eleitos no Rio em 2016, com mais de 46 mil votos. De punhos cerrados, denunciava a violência policial que conheceu de perto. No parlamento, empenhava-se na defesa LGBTQI+ e das outras mulheres negras como ela. Queria lhes dar amparo além do afeto que transbordava em sua fala pungente.
Falemos sobre políticas públicas inclusivas, sobre pobreza, sobre oportunidades iguais que não existem, sobre nascer e crescer em ambientes inóspitos como as favelas. Falemos sobre escassez e precariedade, sobre garantias efetivas, ela pedia. Falemos sobre extermínio de jovens pretos e lutas populares, insistia, animada como quem quer resolver o mundo em um dia. Os projetos que apresentou na Câmara de Vereadores são um registro institucional do que ela compreendia como direito humano. Foram dela ideias como o programa “Pra fazer valer o aborto legal”, as “Casas de Parto” para a rede municipal de saúde, o “Programa de Espaço Infantil Noturno” para atender os filhos de mães que trabalham ou estudam além do dia, a criação da campanha #AssédioNãoÉPassageiro. Ao todo, apresentou 16 propostas para combater vulnerabilidades a que estão expostas as populações periféricas e marginalizadas. Em curtos 15 meses.
Verdades sejam ditas: a direita que estraçalha a reputação e a memória de Marielle Franco ataca o símbolo em que ela se transformou depois de sua morte. Tentar destruir a imagem reta e justa de Marielle é atacar a sua atuação progressista e solidária, empenhada na defesa da vida. A vida livre como deveria ser. Para pretos assim como é para os brancos. Para os pobres, assim como é para os ricos. Quem a ataca atinge também a luta antirracista, por menos vulnerabilidades sociais e pela liberdade de se escolher e exercer a sexualidade segundo vontades próprias. Os ataques que ainda persistem expõem a covardia de quem tece ofensas a quem não pode mais se defender.
Marielle não teve tempo de ver outras mulheres ocupando os mesmos espaços institucionais que ela. Mas floresce. Em mim, nas minhas companheiras, em cada morador de favela. Marielle cresce entre as multidões. Suavemente, na complexidade que sua figura humana exprimia, íntegra e franca.
*Dani Monteiro é deputada estadual pelo PSOL