A ciência não aprova o retorno às aulas no Rio
Segundo o diretor da ENSP/Fiocruz, números não deixam margem para novo erro da prefeitura
O retorno às aulas presenciais agora é uma medida precipitada. As escolas não estão dentro de uma redoma e mais de 1 milhão de pessoas estarão expostas. A volta das particulares aumenta a desigualdade e a circulação na cidade. Entretanto, é possível retomar as atividades escolares antes mesmo da vacina, porém é preciso ter controle da pandemia e o Brasil não o tem neste momento. Tudo isso quem afirma é Hermano Castro, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública, ENSP/Fiocruz. Segundo o pneumologista, o município ainda não atende a uma série de indicadores que garantem um cenário seguro para todos: responsáveis, profissionais da educação, estudantes e sociedade em geral.
Em entrevista exclusiva para o PSOL Carioca, o médico é categórico em afirmar que mesmo com protocolos de segurança, os números da pandemia na cidade não permitem uma reabertura segura. Tanto os casos por mil habitantes, quanto a ocupação de 80% dos leitos de UTI para a Covid indicam o que seria mais uma precipitação:
– A permissão para restaurantes, salões de beleza, shopping centers, entre outros, foi precipitada, colocando a população na rua e expondo mais pessoas ao vírus. Essas políticas acabam atrapalhando e retardando ainda mais a abertura das escolas, mantendo um patamar elevado de casos e mortes.
Ao mesmo tempo, para Castro, reabrir as escolas privadas e não reabrir as públicas aprofunda a desigualdade que já existe:
– Precisamos lembrar mais uma vez que mesmo atendendo aos protocolos sanitários, as escolas privadas não estão isoladas na sociedade. A volta das atividades escolares coloca muitas pessoas circulando nas ruas e transportes públicos e a pandemia ainda não está sob controle no Rio de Janeiro.
Confira a entrevista na íntegra:
Psol Carioca: Por que um retorno às aulas agora é uma medida precipitada?
Hermano Castro: O retorno às aulas agora é uma medida precipitada porque o município ainda não atende a uma série de indicadores que garantem um cenário seguro para todos.
Primeiro, temos que ter certeza de que haja uma redução do número de casos por dia. Ainda estamos na “faixa amarela”, com cerca de 4 a 5 casos por 100.000 habitantes. O ideal de segurança, para pensarmos um retorno às aulas, seria ter menos de 1 caso por 100.000 habitantes. E isso sem contar as subnotificações. Na cidade, temos muitas pessoas com situação leve ou moderada que não fazem os exames e, consequentemente, não entram nas estatísticas.
A testagem deve ser para todos os casos ou, pelo menos, 80% dos casos leves existentes. Isso é essencial para que possamos diagnosticar, deixar em isolamento, acompanhar e monitorar as pessoas infectadas e aquelas com quem teve contato.
Outro indicador que ainda está muito fora do padrão é a hospitalização. De acordo com as informações da prefeitura, nós estamos mantendo uma média de 220 pacientes internados em leitos de UTI desde o início da pandemia. Ou seja, não houve uma redução significativa desse número e os leitos ocupados estão em cerca de 80%. Para que a situação fique sob controle, precisamos que a ocupação seja de no máximo 25%. Só assim garantimos que, caso tenhamos um novo surto, exista a possibilidade de internação para os casos graves.
Média de ocupação de leitos de UTI praticamente se manteve desde o início da pandemia
Casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave começam a subir
Psol Carioca: Como isso coloca em risco a saúde dos jovens, pais e profissionais da educação?
HC: É preciso lembrar que a escola não está dentro de uma redoma. Ela é parte da sociedade. No momento, não temos controle da pandemia e, ao liberarmos a volta às aulas, estima-se que mais de um milhão de pessoas vão voltar a circular na cidade. Esses jovens, pais e profissionais da educação terão de pegar transportes públicos, que são locais onde o risco de contágio é muito maior.
Então mesmo que a escola garanta todas as medidas sanitárias, as possibilidades de contato com o vírus ainda são grandes e podem permitir a transmissão da escola pra casa e da casa pra escola. Ou seja, as crianças e adolescentes correm o risco de exposição ao Covid-19 e ainda realizar a transmissão dentro de suas residências para seus familiares, o que representa um risco ainda maior para aqueles mais vulneráveis, como idosos e pessoas nos grupos de risco.
No Brasil estima-se que cerca de 9,3 milhões de pessoas hoje convivam com crianças e adolescentes. No Estado do Rio de janeiro temos em torno de 350 mil idosos e 243 mil pessoas portadoras de comorbidades na mesma situação, o que aumenta o risco da reabertura das escolas.
Psol Carioca: É preciso ter vacina para o retorno das escolas? Quais devem ser as condições mínimas para pensarmos uma volta às aulas segura?
HC: Apesar de torcermos para que a vacina venha até o final do ano, é possível que só esteja disponível na metade de 2021. Ainda existe muita dúvida em torno desse assunto. Por isso, não podemos simplesmente dizer que só retornaremos com a vacina.
É possível retomar as atividades escolares, porém é preciso ter controle da pandemia e o Brasil não está conseguindo isso no momento. Os indicadores já apontados têm que ser estar garantidos. É fundamental ter condições mínimas de segurança se quisermos o retorno das aulas. Precisamos de leitos disponíveis, casos e mortes em quase zero, ter uma política de testagem na maioria das pessoas suspeitas e contactantes, isolamento para esses, entre outras medidas já mencionadas. Também é indispensável que a taxa de contágio (valor de R) esteja abaixo de 1, onde 100 pessoas infectam 100 pessoas, sendo ideal para maior segurança o valor de 0,5, na qual 100 pessoas infectam 50 pessoas, e daí para menos, garantindo uma redução do número de contágios.
E enquanto esses indicadores não são alcançados, nossa “vacina” deve ser o controle dos casos suspeitos, testes RT-PCR para suspeitos e contactantes, distanciamento social e medidas de higiene efetivas.
Psol Carioca: Por que não podemos justificar a abertura das escolas por conta das ruas e praias estarem cheias e o comércio todo funcionando?
HC: Existe uma inversão total nessa lógica. O que faltou das nossas autoridades públicas foi mais consciência na reabertura de determinadas atividades econômicas. A permissão para restaurantes, salões de beleza, shopping centers, entre outros, foi precipitada, colocando a população na rua e expondo mais pessoas ao vírus. E é visível que as medidas de proteção não estão funcionando, como é o exemplo das praias, onde as pessoas não conseguem ficar de máscara o tempo todo.
Essas políticas acabam atrapalhando e retardando ainda mais a abertura das escolas, mantendo um patamar elevado de casos e mortes. Precisamos ter controle da pandemia, reduzindo esses números, e mais investimento no SUS, garantindo ações efetivas para diagnósticos rápidos e isolamentos adequados.
Psol Carioca: O que os estudos internacionais sobre transmissão entre crianças e adolescentes estão nos ensinando? Como outros países estão lidando com a volta às aulas?
HC: Já aprendemos com os estudos que as crianças acima de 10 anos têm o mesmo poder de transmissão do vírus que os adultos. Um estudo recente de Harvard nos mostrou que crianças com sintomas leves produzem vírus igual a um adulto doente no CTI, até mesmo por mais tempo. Elas adoecem menos, porém passam a doença na mesma ou em maior intensidade.
Mesmo com a pandemia mais controlada, os países da Europa que voltaram às aulas ainda tiveram que fechar diversas escolas ou cancelar turnos inteiros por conta de casos que surgiram em professores e alunos. Logo, em caso de retorno às atividades, é fundamental ter isso no protocolo. E também trabalhar corretamente no rodízio de turmas e nas questões sanitárias.
Quando as escolas reabrirem é natural que haja um aumento nos casos, como aconteceu na Europa. Mas temos que fazer de um jeito que o aumento não exploda e acabe sufocando o sistema. Tudo isso tem que ser levado em conta, para que possamos ter mais segurança na volta às aulas, aprendendo com as lições fundamentais tiradas das experiências em outros países.
Psol Carioca: O que a diferença de data de reabertura entre as escolas privadas e públicas pode causar?
HC: Essa medida põe em evidência a política de educação do país e a desigualdade entre o acesso à educação e formação.
Reabrir as escolas privadas agora e não reabrir as públicas aprofunda a desigualdade que já existe. Aumenta-se o fosso da formação que deveria ser direito de todos.
Precisamos lembrar mais uma vez que mesmo atendendo aos protocolos sanitários, as escolas privadas não estão isoladas na sociedade. A volta das atividades escolares coloca muitas pessoas circulando nas ruas e transportes públicos e a pandemia ainda não está sob controle no Rio de Janeiro.
Nós somos sim defensores da reabertura das escolas e de que exista uma educação adequada para todos. O problema central é a segurança disso. É preciso medir os riscos e benefícios e ter políticas diferenciadas que atendam e deem amparo a todos os que mais necessitam. E essas medidas não vêm sendo aplicadas de forma correta. Faltou política adequada de renda mínima e suporte aos pequenos empresários. Os governos deveriam investir mais no acompanhamento da saúde física e psicológica dos alunos e até mesmo no fornecimento tecnologia e internet, por meio de parcerias, de modo que todos pudessem ter acesso à educação e que os prejuízos da pandemia pudessem ser minimizados. Principalmente entre aqueles que mais precisam.
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