(Texto de Mônica Cunha publicado na Revista Fórum em 25/04/2021)
Preto, pobre e favelado, no Brasil, conhece muito bem a realidade de fome e violência que assola o país. Sobrevivemos enquanto povo negro a 500 anos de desrespeito, desumanização e extrema desigualdade, sofrendo com estupros, torturas, terror e morte durante todo esse período.
Apesar dessa infeliz constatação, persistem no Brasil setores incapazes (ou que preferem se fingir de) de reconhecer o ciclo de violência e negação de direitos que os quase quatro séculos de escravidão, ainda hoje, provocam. Não há diferença entre aqueles senhores de terras, nos séculos XVI a XIX, que expropriavam o trabalho dos negros escravizados e as pessoas que hoje negam o racismo estrutural como traço marcante da desigualdade na sociedade brasileira. Ambos se mostram incapazes de ler a realidade a sua volta e ver no outro (negro) um semelhante. A sua omissão, hoje, permite, assim como no passado, a legitimação do genocídio da juventude negra, o sofrimento e as torturas decorrentes do encarceramento em massa, entre outras graves violações.
A crise da Covid-19 veio desnudar ainda mais o impacto que o racismo estrutural tem na luta pela sobrevivência do povo preto. Se de 2003 a 2014 políticas públicas foram capazes de reduzir as desigualdades entre brancos e negros, embora ainda timidamente, a partir de 2016 essa desigualdade volta a crescer, com uma política de austeridade, seguida pelo desmonte das políticas sociais após o teto de gastos e demais políticas neoliberais. E é durante este processo de desmonte e sucateamento das políticas sociais que se inicia a maior crise sanitária da História recente da humanidade.
O povo preto, por ser a maioria das pessoas que dependem do SUS para acessar qualquer serviço de saúde, foi impactado de forma mais grave do que os brancos. Para se ter ideia, entre as pessoas negras internadas, 33% morrem, quando este índice entre brancos é de 22%. Esses dados podem ser entendidos a partir da política de desmonte dos serviços públicos de saúde.
Da mesma forma, somos os que mais sofreram com a crise econômica que advém da crise sanitária. Os índices de desemprego entre negros cresceram mais que entre brancos e somos maioria entre os trabalhadores informais.
Em 2020, após muita luta no Congresso Nacional para garantir o auxílio emergencial de R$ 600, foi possível aliviar parte do sofrimento dessas pessoas, mas com a chegada de 2021 e o corte definitivo do auxílio, multiplicaram-se as pessoas em situação de rua, quase todas negras.
Neste ponto, uma cena que vi na televisão me chocou: uma mulher, negra, que teve que pedir a um feirante para levar os pés de galinha para ter o que dar de comer para seus filhos. Lembrei-me, mais uma vez, dos escravizados que tinham que se alimentar com as sobras e descartes da casa grande. Mas lembrei também que foram esses mesmos homens e mulheres que, com estas sobras, foram capazes de resistir e criar a feijoada, demonstrando que a luta pela sobrevivência pode, e deve, ser também criativa.
Se não bastasse sermos as maiores vítimas da Covid-19 e aqueles mais impactados pela crise econômica, ainda temos que conviver com o aumento de mortes praticadas por agentes do estado nas favelas no Rio de Janeiro. No último bimestre de 2020, houve um aumento de 161% na comparação com o mesmo período do ano anterior. Um verdadeiro absurdo!
Covid, fome e tiro. É disso que falamos quando mencionamos a palavra resistência. Somos as maiores vítimas destas três mazelas e é por isso que não cansamos de afirmar que o povo negro luta há 500 anos pela sua sobrevivência.
Luta esta que nos toma de um senso de urgência e imediatismo, mas que não pode nos tirar o foco da luta coletiva e da superação deste ciclo de opressão chamado racismo.
Luta, nosso sobrenome!!!!
Monica Cunha é ativista negra, fundadora do Movimento Moleque e membra da Coalizão Negra por Direitos.