Por Renata Souza (Dep. Estadual PSOL RJ) – Originalmente publicado em O Globo
No Dia Nacional da Trabalhadora Doméstica, artigo reflete sobre o cotidiano dessas mulheres, que combina desvalorização da ocupação, baixos rendimentos, informalidade que implica em ausência de proteção social, racismo estrutural e preconceito de classe
“Sou uma Carolina
Trabalhei desde menina
Na infância lavei, passei, engraxei…
Filhos dos outros embalei
Sou negra escritora que virou notícias nos jornais
Foi do Quarto de Despejo aos programas de TV
Sou uma Carolina
Escrevo desde menina
Meus textos foram rasgados, amassados, pisoteados
Foram tantos beliscões
Pelas bandas lá de Minas
Eu sou de Minas Gerais
Fugi da casa da patroa
Vassoura não quero ver mais
A caneta é meu troféu
Borda as palavras no papel
É tudo o que quero dizer
Sou uma Carolina
Feminino e poesia”
(Thula Pilar)
Cleonice Gonçalves fazia o seu trajeto habitual de 120 quilômetros do trabalho na Zona Sul do Rio até a sua casa, em Miguel Pereira, quando foi acometida de um intenso mal-estar e febre. De segunda a quarta-feira, dormia no emprego. A sua patroa tinha voltado da Itália e não contou que havia contraído Covid-19. Aos 63 anos, diabética e hipertensa, portanto do grupo de risco, Cleonice não resistiu. A primeira vítima de Covid-19 no Rio de Janeiro: uma trabalhadora doméstica.
Mirtes Renata de Souza também não teve ofertada a possibilidade de ficar em casa durante a pandemia por sua patroa, a primeira-dama de Tamandaré (PE), Sari Corte-Real. Mirtes não tinha alternativa: precisava levar o seu filho, Miguel, de 5 anos, ao trabalho. Mirtes passeava com o cachorro da patroa, em mais um dia de serviço no luxuoso apartamento, deixando Miguel aos cuidados da mesma. Por racismo e negligência, Sari deixou Miguel à sua própria sorte, e Mirtes encontrou o seu filho já sem vida, após cair do nono andar do condomínio.
Essas histórias marcam a dura realidade das trabalhadoras domésticas no Brasil, que combina desvalorização da ocupação, baixos rendimentos, informalidade que implica em ausência de proteção social, racismo estrutural e preconceito de classe. No Brasil, segundo a última pesquisa do Ipea (2018), mais de 6 milhões de pessoas se dedicam a esses serviços como mensalistas, diaristas, babás, cuidadoras, motoristas, jardineiros ou quaisquer outros profissionais contratados para exercer atividades de cuidado dos domicílios e da família de seus empregadores. Desse total, 92% são mulheres – 63% delas são negras, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda. Apenas 28,3% possuem carteira assinada.
Essas dificuldades se agravaram no contexto da pandemia do Covid-19. Segundo dados do IBGE (2020), 1,5 milhão de pessoas ocupadas em trabalho doméstico durante o ano de 2019 perderam o trabalho em 2020. Houve uma queda de 23% de pessoas ocupadas no trabalho doméstico no mesmo período e uma diminuição de 4,9% do rendimento médio habitualmente recebido, considerada a maior queda observada entre todas as ocupações.
Soma-se a isso a situação de vulnerabilidade imposta às trabalhadoras domésticas informais devido à insuficiência das políticas do governo federal visando proteção social à população atingida pela perda de renda e trabalho durante pandemia: o auxílio emergencial de R$ 600, que já era um rendimento muito aquém da realidade e das necessidades dos trabalhadores informais, foi interrompido em dezembro de 2020 para ser aprovado novamente somente em final de março de 2021, com rendimentos entre R$ 150 e R$ 375. Os valores estabelecidos para transferência de renda pelo governo federal durante a pandemia são inferiores ao valor de uma cesta básica e não combatem de fato o quadro da fome e insegurança alimentar no país.
O Brasil foi um dos últimos países do mundo a acabar com a escravidão, fato que deixou uma marca severa no mercado de trabalho. A presença da trabalhadora doméstica nos domicílios das classes média e alta demonstra como o racismo constituiu culturalmente a organização da vida cotidiana dos mais ricos da sociedade brasileira, como herança dos tempos da escravidão. Não à toa, a conquista de direitos das trabalhadoras domésticas é recente: a invisibilidade se coaduna com a superexploração desse serviço, que esteve, sempre, também calcado numa forte divisão social do trabalho.
Em 2020, a última lei que regulamenta a função, a Lei Complementar 150, completa apenas seis anos. E ainda há muito o que avançar: nunca atingimos nem mesmo 40% do total de trabalhadoras com carteira assinada. A informalidade impera, mesmo que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) tenha recentemente mostrado redução na proporção de mulheres ocupadas que se dedicam a esse tipo de atividade: de 17%, em 1995, para 14,6%, em 2018. O índice sobe para 18,6% entre mulheres negras, contra 10% quando se trata de mulheres brancas.
A figura da trabalhadora doméstica é uma síntese das desigualdades de gênero, raça e classe no Brasil. Quanto mais essa categoria permanece desprotegida de direitos trabalhistas, mais são reforçadas as desigualdades históricas e os estigmas que marcam a vida de tantas dessas mulheres.
* Renata Souza é doutora em Comunicação e Cultura, deputada estadual (PSOL-RJ) e presidente da Comissão Especial de Combate à Miséria e à Extrema Pobreza da Alerj