Por Chico Alencar
‘O Brasil não tem povo, tem público.’ A sentença de Lima Barreto (1881-1922), no início do século passado, revela um problema crônico do país: o déficit de democracia. Só há cultura democrática enraizada com educação, informação e participação cotidiana da população na política, com um Estado poroso às suas demandas.
A superação da ditadura instaurada pelo golpe de 1964 teve a mobilização popular como motor das mudanças institucionais. Sem ela, não haveria anistia, diretas para presidente, Constituição de 1988, impeachment de Collor. Contra Dilma, a direita reaprendeu o caminho da rua — ela, que não dava as caras desde as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, há quase 60 anos. A extrema direita sempre existiu: nos anos 30 do século passado, a Ação Integralista Brasileira, de Plínio Salgado, filiou rapidamente 1,5 milhão de pessoas. Hoje o extremismo está atuante nas redes, nutrido por fake news, e nas ruas, como se viu no 7 de Setembro.
Mas foi animador ver pequenas multidões reagindo ao desmonte bolsonarista. Sem essa presença, os retrocessos continuarão, e a trama golpista não será barrada. As famílias dos mais de 604 mil mortos pela Covid-19 nos interpelam.
Nos significativos atos de 2 de outubro foram cometidos erros que causaram atrito e estreitamento — e que exigem balanço crítico da esquerda e de todos os democratas. Para superar os equívocos, é preciso cumprir o pactuado por movimentos e partidos: nenhuma hostilidade entre os participantes. Frente contra o neofascismo é, por natureza, ampla e heterogênea.
Outro ponto fulcral é não fazer das passeatas antecipação de campanhas. Isso não unifica e até afasta participantes. É legítimo que os partidos tenham seus presidenciáveis. Mas o elemento mobilizador do momento é a luta contra o genocídio sanitário, a fome, a carestia, o desemprego, a devastação ambiental. Contra Bolsonaro e suas ameaças autocráticas. Pelo seu impeachment. Caso ele não prospere, vamos nos preparar para a batalha das urnas em 2022, inclusive com mesa de diálogo sobre candidaturas e uma plataforma que unifique o campo progressista. Ano que vem não é agora.
É preciso também repensar a velha fórmula do grande palanque, das longas falas. Desde 2013 — naquelas manifestações difusas e com pautas diversas e algo confusas —, há uma ânsia de protagonismo: mais cidadania do encontro de causas populares que “estadania” dos aparatos partidários. São sinais “novidadeiros” do tempo, as caminhadas que juntam coletivos vários, com suas singularidades, canções, batuques, criatividade. Com rumo e direção, mas sem disputas hegemonistas. Unidade na diversidade, contra o que não queremos mais, nunca mais.
Virão novos atos nacionais contra Bolsonaro e pela democracia. As agudas conclusões da CPI da Covid terão desdobramentos. A consciência negra vai reverberar no 20 de novembro. Afastemos o narcisismo das pequenas diferenças para conquistarmos o principal: levar às ruas os milhões de atingidos pelo caos atual, dando corpo e alma à indignação.
*Professor de História e vereador (PSOL) no Rio
Artigo originalmente publicado no jornal O Globo