Por Juan Leal*
Desde cedo, aprendemos que maus hábitos de vida com o histórico familiar podem ser a causa do entupimento de artérias do corpo. A circulação sanguínea interrompida pode ser fatal, ou, com sorte e acesso à saúde de qualidade, uma intervenção médica pode resolver. Agora, você pode imaginar a estrutura cidade como um grande sistema circulatório e substituir “maus hábitos e histórico familiar” por “décadas de descaso e más gestões”, e assim teremos uma comparação simples sobre a importância dos trabalhadores e trabalhadoras da limpeza urbana e as condições que os levaram a mais uma grande greve na cidade do Rio de Janeiro. Uma interrupção no fluxo de tratamento dos dejetos é capaz de causar um colapso urbano.
Apesar do uniforme laranja saltar aos olhos, os garis sofrem com a marginalização da profissão e com a desvalorização por parte do Poder Público. O trabalho braçal, até hoje, ainda é compreendido como tarefa daqueles que possuem baixa escolaridade e, por isso, estão reservados à parcela descartável da sociedade, os mesmos que têm seus direitos negados pelas instituições diariamente. É a divisão social do trabalho, opondo o esforço braçal à produção intelectual, que desnuda as desigualdades.
O que fica encoberto pelos estigmas degradantes que foram criados em torno dos garis é o papel essencial desses trabalhadores para a saúde pública. Em uma sociedade que produz quantidades alarmantes de lixo, basta um dia de greve dos garis e a cidade se mostra caótica. A limpeza urbana, a manutenção e resguardo de canais fluviais e da rede de esgoto, o controle de pragas são funções fundamentais para o funcionamento normal da cidade. Os garis são a alimentação saudável e a vida ativa da cidade, são parte indispensável na prevenção de doenças, são um dos responsáveis pela estabilização do sistema de saúde e pela preservação do meio ambiente. Ainda assim, figuram como uma das categorias com menores salários do Brasil. Com governos que insistem em apostar em remédios ineficazes e abrem mão de políticas estruturais de prevenção e preservação ambiental, a desvalorização dos garis é sintomática.
No início do século XIX, o imperador determinou que o serviço de limpeza retirasse das ruas o lixo, os moradores em situação de rua e os desempregados. Era a ideia de que os pobres e excluídos tinham responsabilidade sobre as doenças propagadas pelo ar. Hoje, sabemos, de fato, de onde elas vêm: do descaso do Poder Público com os trabalhadores e trabalhadoras da limpeza. Vem também da Prefeitura que segue desvalorizando esses profissionais e, consequentemente, o povo carioca. O descaso é estrutural. Afinal, as perdas salariais pela falta de reajuste e pela alta da inflação, a precarização do plano de saúde, os tíquetes alimentação insuficientes, a falta de materiais de proteção individual adequados são alguns dos problemas que os garis enfrentam no agora, mas que já são temas de precarização da vida e de protestos em gestões passadas.
Agora, os garis fazem uma greve legítima por melhores condições de trabalho e de vida. Já são três anos com o salário congelado. O aumento significativo da verba orçamentária da prefeitura para a limpeza urbana não chegou até a parte mais importante da estrutura: os trabalhadores e trabalhadoras. Ao contrário, eles amargaram a mudança de plano de saúde com uma empresa incapaz de dar a cobertura necessária. Não bastasse a parcialidade do judiciário que decretou a ilegalidade da greve, a resposta da prefeitura é a perseguição e a criminalização dos grevistas. Não surpreende. O descaso de Eduardo Paes é mais do que irresponsabilidade, é projeto.
* Juan é presidente do PSOL Carioca, estudou Ciências Sociais na UFRJ, é militante da cultura e do direito à cidade, além de babalorixá.