Por Juan Leal*

Em mais um dia de trabalho, Eliane saiu com sua mercadoria pelas ruas do Rio em busca de alguma renda, enfrentando as incertezas do comércio informal em uma cidade assolada pelos efeitos da crise econômica. Neste dia, ao invés de voltar para casa com o sustento que garantiria comida no prato e alguma parte das contas básicas, Eliane foi surpreendida por uma ação da Guarda Municipal que, com a violência da lei, tomou toda sua mercadoria. Mercadoria conquistada com o suor do seu próprio trabalho e tomada à força pelas mãos dos agentes da ordem.

Cenas como essa têm se repetido diariamente na cidade do Rio de Janeiro. A política do “choque de ordem” usa, constantemente, da força desproporcional do Estado para violentar física e psicologicamente camelôs e ambulantes. Sob os duros reflexos da crise econômica e dos efeitos da pandemia do novo coronavírus, essa política ganha contornos ainda mais cruéis, pois ignora a realidade da população. O Estado do Rio registrou o maior índice de perda de emprego durante a pandemia. A precarização das relações de trabalho em um território que concentra mais de 70% de sua economia no setor de serviços tem sido uma tendência. Enquanto a população economicamente ativa e a população ocupada da cidade do Rio tiveram as menores taxas de expansão de todas as regiões metropolitanas nos últimos anos, a capital fluminense tem o maior índice de informalidade do Brasil, segundo pesquisa da FGV.

Nesse cenário, a busca por alternativas autônomas para obtenção de renda é um movimento necessário à sobrevivência. Apesar da pressão popular e da aprovação da Lei da Renda Básica Carioca, a prefeitura nunca implementou essa política de transferência de renda, o que contribuiu significativamente para o aumento da miséria durante a pandemia. O problema do crescimento da carestia não é resultado do vírus, como o governo insiste em dizer, mas sim de uma completa ausência de políticas públicas que dessem condições materiais à população carioca para enfrentar o período de isolamento físico e retomar a vida com sua dignidade resguardada. Se há um aumento do número de camelôs e ambulantes, a origem é o desemprego e a responsabilidade é do Poder Público. Ainda assim, diante disso, a resposta da prefeitura para esse caos econômico é a repressão, sob o pretexto do ordenamento.

O perfil higienista de Eduardo Paes não é novidade na história. O Rio vive, com Paes, ares do século passado, quando a população pobre e os escravos libertos foram condenados à miséria extrema com a política do “bota-abaixo” de Pereira Passos. Remoções e demolições caminharam juntas com a repressão ao comércio ambulante, para que o Rio passasse a ser mais apresentável aos olhos da elite europeia. O objetivo era, nas palavras do ex-prefeito, em seu primeiro discurso em 1903, pôr fim “à praga dos vendedores ambulantes” que davam à cidade “o aspecto de tavolagem”. Não fosse pela diferença linguística da época, seria difícil identificar o prefeito autor dessa fala. Passos ou Paes?

Algumas diferenças à parte, o que parece ser ignorado pelas prefeituras, há mais de um século, é o fato de que ninguém escolhe trabalhar de maneira precarizada, sem direito trabalhista algum, com uma incerteza diária do quanto vai obter de renda, com sol e chuva na cabeça, simplesmente porque sonha em ser camelô. Trabalhar como camelô é uma necessidade. É uma imposição de um sistema que produz, essencialmente, novos desempregados todos os dias para que o poder de dominação dos ricos sobre os trabalhadores possa se manter intacto. E se essa forma de trabalho existe há tanto tempo, é porque a desigualdade e o desemprego nunca foram superados. O trabalho ambulante, a barraquinha na rua, o isopor no samba são maneiras legítimas de sobrevivência, de garantir a comida no prato nesse sistema em que a fome é um projeto. A informalidade não tem glamour e não admite eufemismo, tipo “empreendedorismo”.

Os dados do IBGE, a partir dos anos 90, mostram que a maior parte dos camelôs cariocas está na faixa etária de 26 a 35 anos. São jovens adultos que não encontram espaço, tampouco perspectiva de futuro no mercado de trabalho formal, porém veem, nas ruas, um espaço de luta pelo presente. São levados ao trabalho informal por sentirem na pele a carestia. E carestia não se resolve com choque de ordem. Os problemas graves do desemprego e da flexibilização das relações de trabalho não encontram solução empurrando os trabalhadores para debaixo do tapete, para que a cidade aparente limpeza aos olhos dos que passam. O pano de fundo dessa questão não está restrito aos que sofrem, é um mal estrutural e precisa ser enfrentado por toda sociedade.

O cancelamento de licenças, a repressão e a apreensão de produtos dos camelôs, sem que haja políticas públicas efetivas para geração de emprego e renda, estão empurrando essa parcela cada vez maior da população carioca para a miséria extrema. Dezenas de camelôs foram removidos de seus locais de trabalho e mesmo os licenciados não têm estrutura pública para guardar suas mercadorias. O cancelamento do carnaval de rua não considerou, em seu plano, as centenas de trabalhadores ambulantes que esperam por esse evento para garantir a renda de vários meses seguintes. Tudo isso durante uma das maiores crises econômicas dos últimos anos. Eduardo Paes segue sujando as mãos com seu higienismo. E a Secretaria de Ordem Pública é a capataz. Em tempos em que temos que defender o óbvio, é preciso repetir: camelô não é um problema de ordem pública, camelô é trabalhador. E a superação do trabalho precarizado não virá com cassetetes, mas com condições justas e dignas de vida e de trabalho para toda população.

* Juan é presidente do PSOL Carioca, estudou Ciências Sociais na UFRJ, é militante da cultura e do direito à cidade, além de babalorixá.